domingo, 25 de março de 2012

Uma pedra no caminho

A roda de ontem apresentou-se com o tema mais difícil que já vivenciei em uma TC. Éramos três terapeutas na condução, é bom sermos três porque um ajuda o outro. Após a dinâmica de aquecimento abrimos para o grupo expressar os problemas. Esta etapa foi feita com a seguinte pergunta? Qual a pedra está no seu caminho? Na semana anterior houve uma dinâmica com uma pedra em que as pessoas puderam falar, segurando a pedra, o que obstruía seu caminho.
O tema escolhido foi o de Sarah, nome fictício, ela tem uma filha adotiva, usuária de drogas ilícitas (crack) que tem um bebê de seis meses e já está grávida de três meses. Acontece que a jovem de apenas 15 anos ganha as ruas e permanece dias fora de casa, o pior é que ela leva a filhinha. Na última vez que voltou pra casa a bebê estava com febre e sem alimento por mais de 12 horas.
Enquanto eu ouvia sua história um misto de revolta, ódio e amor tomaram conta de mim, por dentro eu chorava desesperadamente. Penso que com um tema desta gravidade não podemos, de imediato, pensar em uma terapia mais profunda, há questões de sobrevivência em jogo que devem ser priorizadas. Assim o nosso mote não foi sobre sentimentos diante de um problema como este, mas de como podemos ajudar esta mãe a ajudar sua filha. Outra participante contou que buscou ajuda para o marido alcoólatra e que após muita luta a família está livre desta doença.
A mãe está meio desorientada, sentindo-se só e impotente diante do problema, negando a doença da filha. Focamos em a mãe reconhecer que a filha está doente e na necessidade de se fazer algo mais efetivo. Destacamos que ela não estava mais só e que nós a apoiaríamos. Na conotação positiva não falamos de filha ou neta. Falamos do seu grande coração, de sua força e determinação. Reforçamos que algumas vezes na vida não temos a opção de pegar ou largar, há momentos que é pegar ou pegar.
Assim como esta mãe não tem outra opção, nós terapeutas também não temos. Ao nos depararmos com um problema como este a nossa postura deve ser de pegar, de envolver-se. Se nós estendemos a mão não podemos mais retirá-la. Assim, ao término da roda discamos no 100 e fizemos a denúncia, alguém irá a casa de Sarah tentar ajudar a jovem e nós acompanharemos tudo de perto. A avó, com a guarda da neta, não permitirá que a filha leve a bebê pra rua. Uma participante promoveu uma arrecadação para doarmos fraldas, leite e roupa.
Neste caso há, literalmente, uma pedra no caminho: o crack. Vamos tirar esta pedra do caminho?

domingo, 11 de março de 2012

Crises que preparam a mulher para tornar-se mãe

O atendimento às grávidas no HUB, desta semana, revelou vários aspectos psíquicos característicos da gestação. Dandara (nome fictício), uma jovem de 21 anos, primípara, com encaminhamento psiquiátrico para a clínica psicológica em função de um quadro depressivo gestacional, com choros e acessos de raiva. Ela brigou com o marido e voltou para a casa da mãe, com quem nunca teve um bom relacionamento, exceto agora. No início da gravidez procurou o pai que não via desde que era criança, os dois se reaproximaram. Em meio a tantos problemas ela diz que a gravidez tem sido um momento de muita tranquilidade em sua vida. “a única pessoa que me importa é meu filho...meu relacionamento com ele será bem diferente do de minha mãe comigo”.
Com tantas emoções seria possível que este período seja tão tranquilo? Sim, é possível que os dois afetos coexistam. A ambivalência, presença simultânea de dois sentimentos opostos, é uma característica do período gestacional. Brigava com a mãe, agora conseguem conversar, não falava com o pai, se reaproximaram, por outro lado afasta-se do marido. Neste tempo a mulher está se preparando para ser mãe, como sua mãe.  
Apesar de Dandara dizer que fará tudo diferente percebi que ela terá o filho com a mesma idade que a mãe a teve, separa-se do marido como a mãe o fez, quando ela nasceu, trabalha dez horas por dia e vai continuar trabalhando, como sua mãe que era ausente ela poderá ser. É claro que ela fará diferente de sua mãe, mas fortemente influenciada por esta.
A gestação é também um momento de regressões na vida de uma mulher, de reatar laços com os genitores, como esta moça o faz, reconstrói os laços com os pais. Tudo isso porque nesta época a mulher regride psiquicamente à criança que ela fora, ao bebê que precisou de cuidados. Este período de crise é parte do processo de preparação para tornar-se psiquicamente mãe, lembrar-se do bebê que ela fora e identificar-se com sua mãe a ajudará a entender o seu bebê e adaptar-se às necessidades dele, como diria Winnicott.
Para saber mais: Winnicott (1956). Preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, p. 399-405.

domingo, 4 de março de 2012

Gravidez e relações arcaicas

Estou em férias do trabalho (do oficial), então resolvi retomar o trabalho com o grupo de grávidas no Hospital Universitário de Brasília (HUB). Hoje 7 e 30 da manhã estávamos chegando (eu e Valéria) à sala de atendimento para gestantes de alto-risco. Oferecemos nossa escuta e algumas grávidas vieram até nós para compartilhar conosco suas angústias, medos, fantasmas, ambivalências e, é claro, alegrias e esperanças. Destaco que não realizamos uma terapia comunitária.
Compartilho apenas um caso. Ana (nome fictício) está grávida de 5 meses de uma menina, ela é solteira, que teve um primeiro filho que veio a óbito aos 2 anos de idade por problemas respiratórios. Esse filho rejeitou o peito, cheio de leite, aos dois meses de idade. Parece que faltou algo na relação desta mãe com este filho. Disse ela: “Ele perdia peso facilmente e estava sempre doente”. Para Winnicott uma alimentação bem sucedida e o desmame retratam o bebê que experimentou um sentimento de onipotência no decorrer da fase de dependência absoluta da mãe, quando ela era capaz de adaptar-se às suas necessidades (Preocupação materna primária, Winnicott, 1956). Artigo sobre o tema.
Hipertensão gestacional algo comum
Chamou-me a atenção o fato de esta mulher dizer: “tem que nascer logo, na barriga dá muito trabalho”. Parece que a humanidade inteira pensa diferente dela. No desenvolver de sua fala descobrimos que ela possui pressão alta (hipertensão gestacional) teve que excluir vários alimentos e atualmente dorme muito mal, devido a um problema na coluna.  Sua gestação não é nada confortável. Ao investigarmos sobre a gestação de sua mãe, Ana nos conta que ela nasceu de sete meses e ficou na incubadora por dois meses. A mãe foi para casa e ela ficou quase dois meses sozinha no hospital.
Parece que faltou algo na relação (primitiva) de Ana com sua mãe. Algo nas relações arcaicas permanece quebrado. Como diria Melanie Klein: Haverá sempre a tentativa de reconstruir o objeto interno danificado. O que aconteceria em alguns casos é que esta falha não permitiria uma livre aceitação da maternidade, durante e após a gestação. Na tentativa de reconstruir o que foi danificado a mulher revive, desde a gestação, seus traumas inconscientes, marcas deixadas no bebê que ela fora, antes do desenvolvimento da linguagem. O desejo de restaurar as relações que foram danificadas com o outro, a começar pela mãe, promoveria o reviver de traumas arcaicos. A ideia de M. Klein é bastante complexa, não é possível explicá-la em um parágrafo.
Para saber mais: Amor, culpa e reparação Obras completas de Melanie Klein, v. 1. Imago, 1991.
A psicanálise de crianças - Obras completas de Melanie Klein, v. 2. Imago, 1997.